Em louvor de Vilanova
Cochilar. Cabecear com sono, dormitar, oscilar.
Os meus leitores já escutaram, certamente, uma frase como esta:
- É mesmo de angolano! Este povo, se não existisse, teria que ser inventado!
É bem verdade que o angolano tem características que os europeus, talvez os que nunca tenham passado por África, não aceitam de bom grado ou não entendem muito bem.
Uma característica que lhe é atribuída é a preguiça, a mangonha. A história verdadeira não é bem essa e é um tanto rebuscada, não vou agora dissertar sobre ela, poderá ficar para outra altura. Pergunto apenas àqueles que assim pensam: quem gostaria de trabalhar de sol a sol, a troco de 50 angolares, com “porrada se refilares”?
Característica verdadeira é a sua alegria de viver, a exuberância perante a vida… e a morte que, para o angolano, é apenas um estádio, uma passagem.
Em Angola ao velório é mais apropriado chamar-se serão obituário. Nesses serões não há coros de lamentações e choros (que não se evitam, evidentemente) intermináveis. Há mais uma roda de estórias, adivinhas e cantos… mas nenhum anedotário estupidificante.
Esse serão tem, porém, uma regra de ouro: é terminantemente proibido coxilar, sob pena de se incorrer em pesada multa, cobrada em dinheiro ou géneros. O produto das coimas, é bom de saber, reverte a favor do orçamento dos comes-e-bebes da noitada.
Há muito boa gente que desconhece que a portuguesíssima cochilar é uma palavra de raiz angolana, registada na língua desde 1671-1696. [1]
“Minha velha mulemba...
À sombra dela (eu era monandengue),
com outros meninos brincando,
eu ensaiei
meus passos de massemba...
Tantas vezes ali deitei meu luando
e ali fiquei cochilando,
à sombra da mulemba.” [2]
Este verbo deriva do quimbundo Kukoxila, cabecear, toscanejar ou escabecear.[3] Deu-se, como indicado no I artigo para a palavra Banzar, a queda do prefixo verbal quimbundo – Ku – e o acrescento da terminação – ar - da 1ª conjugação verbal em português; paralelamente houve uma adaptação morfológica, com a mutação do K em C, já que o Português não admite aquela primeira letra senão para algumas excepções muito restritas, mesmo no Novo Acordo Ortográfico.
Até aqui tudo na santa paz das almas. Há, no entanto, um quiproquó: não foi respeitada a raiz. Se a palavra deriva de Kukoxila a grafia correcta tem que ser Coxilar.
Eu bem procurei, esfalfei-me, mas concluí amargamente que apenas três pessoas estão de acordo quanto a esta questão: Ribas, Vilanova e eu. Nem mesmo o Luandino, pópila!
“Patrão Abelho dava as santas noites que amanhã é dia, a tia Guidinha nunca cochilava – fechava os olhos só para ser nova outra vez.” [4]
Será resultado do grande peso dos dicionaristas?
Ando a reler toda a literatura angolana, da minha biblioteca e de outras, por via do sonho antigo de publicar o Mulonga em livro. É aí que reside a esperança de que mais alguém se junte ao grupo.
Aqui vai a palavra dita pelo Vilanova, com a variante nacionalista do K:
“os passos de novo me trazendo
donde que o sal do exílio me chamou
minha irmã minha irmã
na tonga te busquei inutilmente
a sexa interroguei e a serpente
na honga koxilando sob a folha da mubanga
na lagoa às kitutas procurei
e Nâmbua dei-lhe encontro a caçadora
e quando de teu óbito me contavam
já a tarde tombara em Tunda-a-M’bulu
minha irmã minha irmã
nossa casa de adobe é preciso levantar” [5]
Esta é a palavra toda do poema inteiro, Meu coração habita na Kileba. Não resisti inteirá-lo.
João-Maria Vilanova é a condição perfeita do pseudónimo. Muita gente tentou adivinhá-lo, já foram aventadas várias hipóteses que passam por todos os grandes escritores angolanos, mas ninguém o sabe. Acho mesmo que nem os editores o conhecem. Nem mesmo o Orlando Albuquerque o conheceu, embora tenha sido ele quem o revelou ao mundo com os “Cadernos Capricórnio” de saudosa memória. De uma coisa eu não abdico: com pseudónimo se não for nome ungido, ou com nome verdadeiro se não for pseudónimo, o muito esquecido João-Maria Vilanova é, para mim, o maior poeta angolano de sempre, logo-logo junto a Ruy Duarte de Carvalho.
Os dois poetas preenchem(-me) a eternidade!
notas e bibliografia:
[1] HOUAISS e Mauro de Salles Villar, António / Instituto António Houaiss. Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa, Global Notícias Publicações, Lisboa, 2005.
[2] VICTOR, Geraldo Bessa. Cubata Abandonada, Agência-Geral do Ultramar, Lisboa, 1958, p. 24.
[3] MATTA, J. D. Cordeiro da. Ensaio de Diccionario Kimbúndu-Portuguez, Casa Editora António Maria Pereira, Lisboa, 1893.
[4] VIEIRA, José Luandino. Lourentinho, Dona Antónia de Sousa Neto & Eu. Editorial Caminho, Lisboa, 2006, p. 29
[5] VILANOVA, João-Maria. Poesia, Editorial Caminho, Lisboa, 2004, p. 79.
outra nota:
Não se apoquente quem aqui encontrar palavras ou expressões desexplicadas. A seu tempo todas elas se tornarão límpidas.
admário costa lindo
1 comentário:
Passarei a escrever "coxilar", pois...
Ju
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