Kauha, o ilusionista
Na tradição cultural africana há duas classes de heróis: os Heróis Deificados, divinizados pela grandeza dos seus actos, e os Heróis Fundadores, cuja história explica a origem dos vários reinos e povos.
Reza uma lenda !Kung que Kauha foi o maior ilusionista alguma vez conhecido. Maravilhava o povo com os seus malabarismos e ilusões que, para os pobres mortais, eram feitos apenas ao alcance dos seres imortais. Foi deificado e subiu ao Reino Eterno, que fica muito para lá da Lua. Como Deus, continuou brincalhão. Durante uma visita ao Reino do Efémero, solicitada por um aflito mortal, galhofava ele com tudo e todos quando resolveu descansar à sombra de uma árvore porque, na verdade, os deuses também se cansam. A árvore, incomodada com o conchego de Kauha no seu tronco e sem medir as consequências do acto, resolveu pregar-lhe uma partida. Soltou o maior fruto que gerara e este, qual cabaça gigante, rebentou em cheio na cabeça de Kauha, inundando-o de polpa húmida e peganhenta e inúmeras sementes minúsculas e irritantes. Não sabia a árvore dos maus fígados dos deuses, em vista de certos comportamentos humanos. Kauha levantou-se enfurecido, mirou a árvore de alto a baixo, estendeu as mãos e com os seus divinos poderes arrancou-a, inverteu-a e voltou a plantá-la, mas de pernas para o ar. É por isso que o imbondeiro, assim se passou a chamar a árvore cazucuteira, com a copa enterrada e as raízes ao léu, incha, incha, incha e toma aquele volume todo, tanto que é possível construir uma grande casa dentro do seu tronco, escavacando-o.
Imbondeiro ou Embondeiro?
Para designar em Português a Adansonia digitata, o gigante da flora africana também conhecido por baobá, há duas palavras dicionarizadas, ambas presentes na literatura angolana: Imbondeiro e Embondeiro –
“ - Porque sofre você? Eu não entendo
o motivo do seu pranto...
derrubaram embondeiro,
onde você comeu muita múkua, no gozo” [1]
“E depois de Calomboloca, a chuva grossa caindo, o cheiro bom da terra molhada entrando nas narinas, os campos verdes do algodão vigiados pela sanzala de imbondeiros grandes, floridos ainda, sem múcuas pendendo.” [2]
Dizem os entendidos que a única grafia oficial é embondeiro, segundo “o grande Gonçalves Viana”. [3] Eu não concordo, como não concordei com o, também oficial, Cochilar.
O étimo é o vocábulo quimbundo mBondo, que designa a árvore em causa. Vamos tentar entender como mBondo evoluiu foneticamente para Imbondeiro ou Embondeiro.
Convém desde já clarificar um erro cometido por Fernando Fonseca no artigo “ Embondeiro”, publicado no sítio Ciberdúvidas da Língua Portuguesa. [3] Diz Fonseca a dado passo:
“Nas próprias designações da língua bunda surgem variantes com as sílabas iniciais am (ambundo) e/ou um (umbundo), provenientes, julgo eu, duma nasal inicial diversamente interpretada.”
A verdade daquilo que acontece é a seguinte:
Ao radical mBundu (condição de preto ou de natural de Angola), junta-se o prefixo MU para formação do singular, Mumbundu (preto, natural de Angola) e o prefixo A para a formação do plural, Ambundu (pretos, naturais de Angola) . (4) São as regras da Classe I (que compreende os nomes de entes racionais) de formação dos substantivos em Kimbundu, a língua dos Ambundu.
A sílaba inicial de Ambundu não é am, como refere Fonseca, mas a e a divisão silábica completa da palavra é como segue:
a – mbu – ndu,
pela razão de que o m e o n representam um sinal diacrítico (o til, cuja utilização seria mais consentânea, como já referi em “ o N de Negaje”) e servem para nasalar a consoante que se lhes segue. O m e o n não nasalam o a nem o u, mas sim o b e o d, respectivamente.
O mesmo acontece com Umbundu = U – mbu – ndu (singular) e O – vi – mbu – ndu (plural).
Fonseca diz mais: “Veja-se ainda a grafia ‘Ngola (por Angola), que às vezes se encontra, demonstrativa da instabilidade da vogal nasal reduzida que o ‘n deve representar.”
nGola não é, foneticamente, o mesmo que a versão portuguesa Angola. O n não representa uma (hipotética) vogal nasal instável (an), serve, isso sim, para nasalar a consoante g, coisa difícil de entender por alguns, uma vez que em português não existem consoantes nasais.
A divisão silábica é
nGo – la.
Para melhor entendimento direi que a divisão silábica An-go-la (correcta em Português) será, nestes termos,
A – ngo – la.
Para tentarmos compreender eficazmente a evolução do vocábulo mbondo, consideremos um português antigo chegado a uma sanzala mbundu, apontando para aquelas enormes árvores e indagando o seu nome. [5] A resposta dos angolanos pode ter sido apenas uma, ou várias para melhor se fazerem entender.
Nessa altura, o falante português, em presença de gramática tão estranha (as consoantes nasais e, mais difícil ainda, a pronúncia dessa nasalação) segue o que lhe diz a sua língua materna e sente que necessita de uma prótese no radical africano, uma vogal que, então, nasalará para que o vocábulo fique mais consentâneo com o arranjo fonético a que está acostumado – daqui deriva o erro de Fonseca.
Mas onde vai ele desencantar essa vogal? Não a inventa, não, vai à própria língua africana. E como, se ele não a domina minimamente? Simplesmente pelo ouvir falar, que é assim que ele apreende os novos termos e expressões.
Façamos nós três exercícios de análise.
1º exercício -
Seguindo Rui Ramos no texto “ Imbondeiro ”, do Ciberdúvidas,[5] temos
a expressão ii mbondo, aquele é um mbondo,
ii mbondo > iimbondo > imbondo (crase).
2º exercício –
Em quimbundo, pela regra da concordância, faz-se concordar os atributos com o nome que lhe está associado, por meio de prefixos concordantes ou pronominais, derivados dos prefixos nominais.
ex: kinama kiami (a minha perna) e inama iami (as minhas pernas),
dilonga diami (o meu prato) e malonga mami (crase de maami) (os meus pratos);
Para mbondo vamos analisar o plural, cujo prefixo é ji - de “os meus bondos” teremos
jimbondo jiami > jimbondo j’ami > jimbondo jami.
No plural da Classe IX, à qual pertence mbondo, pode omitir-se o prefixo nominal, quando se segue o prefixo concordante ou o genitivo. [6]
jimbondo jami > mbondo jami
O português antigo pode não ter seguido esta regra mas, apenas, ter provocado uma aférese simples,
jimbondo jami > imbondo jami.
Querendo fazer a concordância do singular, teremos
mbondo iami,
mas a palavra mbondo não tem prefixo do singular, apenas o do plural, ji como se viu. Assim sendo, no singular não há lugar à aplicação da regra de concordância, precisamente pela ausência desse prefixo nominal.
Não satisfeitos com os resultados até aqui obtidos, avancemos para o
3º exercício –
Há uma terceira hipótese para o surgimento de imbondo:
a aproximação fonética ao vocábulo Imbonde ou Imbondo, vagens, [4] que o português antigo já tinha ouvido algures e que presumiu ser a mesma palavra .
Sobre a derivação/evolução dos vocábulos, para que se não pense que isto não passa de treta, uma vez que o povo não anda de gramática a tiracolo, é bom referir que isso é uma falsa questão - o povo não necessita, absolutamente, de regras. Quando os avoengos lusitanos, na sua prática diária, fizeram evoluir do Latim aquelas que seriam mais tarde as Línguas Galaico-Portuguesas, fizeram-no empiricamente – via popular. Mais tarde os estudiosos descobriram as regras dessa evolução e, em posse de tão valioso instrumento, foram ao latim, ao grego e a outras línguas fortes da época, trabalhar palavras – via erudita - que eram fundamentais para se tornar o Português naquilo que é hoje – uma das línguas mais criativas do mundo. Ainda hoje surgem constantemente novas palavras por essas duas vias.
Findos os exercícios, penso que podemos estabelecer correctamente a primeira parte da evolução, a mais difícil,
mbondo > imbondo.
Verifica-se que chegámos sempre a imbondo e nunca a embondo.
“Mete só óleo de palma com lufazema e casca de imbondo, arranjam na cidade.” [7]
Como se trata de uma árvore há que acrescentar a imbondo o sufixo português eiro, o indicado para este tipo de nomes,
imbondo > imbondoeiro > imbondeiro (assimilação regressiva)
chegando-se à evolução completa:
mbondo > imbondo > imbondeiro.
Penso ser claro que Imbondeiro é a forma correcta.
E mais: pelas análises feitas podemos afirmar peremptoriamente que nem sequer é viável uma evolução divergente, uma vez que, para chegarmos a embondo, teremos que passar, forçosamente, por imbondo, uma vez que
Embondeiro é uma corruptela, pela mutação do im em em, comum na língua portuguesa, mormente na linguagem popular (importar-se < emportar-se), pelo que
embondeiro « imbondeiro
Embondeiro não evoluiu de mBondo, mas corrompeu-se de Imbondeiro, a palavra portuguesa correcta.
notas e bibliografia:
[1] VICTOR, Geraldo Bessa. Cubata Abandonada, Agência-Geral do Ultramar, Lisboa, 1958, p. 25.
[2] VIEIRA, José Luandino. A Vida Verdadeira de Domingos Xavier, Edições 70, 4ª edição, Lisboa, 1988, p.35
[3] FONSECA, Fernando V. Peixoto. Embondeiro, Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, 25.07.1997,
[url] http://www.ciberduvidas..sapo.pt/controversias.php?rid=901, ac. 14.01.2009
[4] MATTA, J. D. Cordeiro da. Ensaio de Diccionario Kimbúndu-Portuguez, Casa Editora António Maria Pereira, Lisboa, 1893.
[5] RAMOS, Rui. Imbondeiro, Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, 24.07.1997,
[url] http://www.ciberduvidas.sapo.pt/controversias.php?rid=903, ac. 14.01.2009:
“Quando um português antigo chegou a uma sanzala mbundu e apontou para aquelas enormes árvores indagando o seu nome, as pessoas teriam talvez respondido: «ii mbondo» (aquilo é um mbondo, aquele é um mbondo).”
[6] Por esta regra também concordam dois nomes por meio do genitivo, o que não vem agora ao caso.
[7] MONTEIRO, Manuel Rui. Rioseco, Edições Cotovia, 2ª edição, Lisboa, 1999, p. 91.
admário costa lindo
3 comentários:
"Virge", Admário, as coisas que tu sabes e eu já me sinto incapaz de aprender (cheguei tarde...) - mas fico contente com o prazer de ler-te.
Um abraço
Ju
(...)a palavra mbondo não tem prefixo do singular, apenas o do plural(...)
Li algures, já não me lembro onde, que a palavra mbondo e todas as outras palavras da mesma classe (é assim que se chama?) têm mesmo um prefixo, o qual não é mais do que a própria nasalação inicial da palavra...
Segundo o autor (uma pessoa muito versada no assunto, se não me falha a memória), mesmo as palavras que não são pronunciadas com a dita nasalação inicial também "possuem" essa mesma nasalação. O que não dá é jeito usá-la com algumas consoantes, isto é, trata-se apenas de uma questão de eufonia (é assim que se diz?). Por exemplo, a palavra hoji (leão em kimbundu) "tem" uma nasalação inicial, só que não dá jeito nasalar a letra H.
O autor lembrava ainda que, se a nasalação inicial não existe em kimbundu para algumas consoantes, ela pode existir para essas mesmas consoantes em outras línguas bantas, dando como exemplo a letra P, que não é nasalada nunca em kimbundu, mas que pode sê-lo em kikongo.
Amigo Denudado,
Tem toda a razão. Há autores que consideram o "N" e o "M", ou seja, a nasalação ("acto ou efeito de nasalar")um prefixo. Tudo deriva da proposta de Wilherm Bleek, bibliotecária do governador da cidade do Cabo, de classificação dos nomes das línguas bantas em (dizia ele) "géneros" (em 1851 com 16 "géneros" e em 1856 com 18 "géneros")e que tem seguidores na actualidade. Como é evidente, eu não concordo. Seja como for, essas palavras continuam a pertencer à mesma classe (classe IX no quimbundo). Num próximo artigo falarei sobre este assunto e outros relacionados. Um abraço.
Enviar um comentário