Dembos
Os cafés, tanto o conteúdo quanto o continente extenso, podem ser oportunidade para uma conversa substantiva ou um fútil desperdício de tempo. Tudo depende da companhia. Na internet passa-se o mesmo, com a variante da anulação de distâncias e a enorme diversidade de interesses que se encontra frente a um computador.
Vem este intróito a propósito das últimas aventuras loquazes provocadas por Denodado, um amigo do Angola Haria desde o primeiro momento.
No comentário que fez ao artigo anterior esclarece, com propriedade e conhecimento, que “o nome Dembo, na verdade, não designa o natural da região do mesmo nome, a qual é constituída, tanto quanto julgo saber, pelo município dos Dembos propriamente dito, cuja sede se chama Quibaxe e que pertence à província do Kwanza-Norte, e pelo município de Nambuangongo, que fica na província do Bengo, além de algumas franjas de municípios vizinhos, como o do Dange (cuja sede é Quitexe), na província do Uíje” e que o nome Dembo é “dado aos detentores da autoridade tradicional máxima na região referida, os quais são herdeiros dos soberanos de antigos estados independentes minúsculos, resultantes de uma separação do reino do Congo.”
Só quem ama verdadeiramente Angola, muito para lá das paisagens idílicas, conhece a História daquela terra. Em Portugal pouca gente sabe que, no tempo daqueles outros senhores, em Angola quem se interessasse pela sua História e por todos os outros aspectos do conhecimento – etnológicos, geográficos, zoológicos, botânicos, arquitectónicos – tinha que ir em sua busca, porque nas escolas ensinavam-nos as serras de Portugal, os rios de Portugal, os caminhos-de-ferro de Portugal, os portos de Portugal, mas de Angola… nada! Talvez pensassem que os matumbos tinham mais era que olhar para céu, para as águas, para os muxitos, para os montes e esperar que se despenhasse a sabedoria aos trambolhões. Ou cadavez tinham medo de nós! Porque sabiam que só quem conhece verdadeiramente pode amar. Aqueles que apenas mastigam o supérfluo e deixam escapar o suco por entre os dedos podem, quanto muito, ter apenas um devaneio amoroso.
Em Nova Lisboa, durante o tempo de tropa, convivi com um amigo muito folgazão, que fazia de tudo para evitar que aquele nefasto período das nossas vidas fosse levado com muita sisudeza. Demo-nos bem com essa postura. Era conhecido por Quibaxe, o nome da sua terra e para mim ficou sendo, para sempre, o Quibaxe. O único convívio que tivemos foi durante o tempo de instrução, mas consigo recordar este episódio, com pormenores vívidos que não vou aqui descrever, trinta e oito anos depois. E esta particularidade, de se dar o nome da terra a pessoas e vice-versa, vai fazer-nos compreender o que vou analisar de seguida.
Tudo o que Denodado escreveu consubstancia um grande conhecimento da região. Nada tenho a rectificar. Irei apenas acrescentar outros pormenores.
Dei a esta série de artigos o título “Palavras Aventureiras” exactamente porque é disso que se trata: a aventurosa vida das palavras – ab aeterno.
A ciência dessa característica dos vocábulos e expressões – a variabilidade de significação durante períodos distintos – é a semântica. Por mais comuns que sejam, ou por isso mesmo, eles e elas têm personalidade e história próprias, pese embora os maus-tratos que lhes damos muitas vezes. Não merecem essa afronta porque, bem vistas as coisas, são dos nossos melhores amigos; tanto, que tudo fazem para nos obsequiar, incluindo a mudança.
“Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades,
Muda-se o ser, muda-se a confiança;
Todo o mundo é composto de mudança,
Tomando sempre novas qualidades.” (Camões)
Há duas formas de derivação das palavras: a evolução morfológica – referente à grafia – e a evolução semântica – do significado ou sentido. A evolução semântica ocorre (muitas vezes a par da morfológica) na passagem de um vocábulo de uma língua para outra – como do Latim para o Português, como das línguas Bantas para o Português. Mas acontece também dentro da própria Língua. Há termos que têm hoje uma acepção diferente da original. A significação inicial pode perder-se, mas pode também manter-se a par do(s) novo(s) significado(s).
Ministro – não é necessário escolher antropónimo porque todos são iguais nesta faceta – já não é o que era: significava em Latim (Ministru) aquele que serve ou ajuda, o criado ou servente, o escravo. Hoje o Ministro é o membro de um Governo (alguns dizem-se ainda escravos do ministério), a quem incumbe um cargo ou função. É também o sacerdote ou pastor de uma religião. Os dicionários registam ainda as acepções auxiliar, criado e executor.
Estilo é uma palavra com uma história sui generis. Eis a sua evolução semântica:
instrumento de escrita > escrita > composição > forma especial de escrever > maneira de se exprimir > característica artística.
Um dos suportes da escrita, entre os Romanos, para além da folha de papiro e do pergaminho, era uma pequena tábua encerada. Para gravar as palavras sobre a tábua utilizavam o Stilus, um ponteiro metálico com duas pontas, uma aguçada para escrever e outra achatada para rasurar. Evoluiu para o português Estilo, vocábulo que passou mais tarde a designar o próprio trabalho que fazia, a Escrita. De escrita evoluiu para Composição, aquilo que se consegue com a escrita. Não contentes, os homens deram-lhe novo conteúdo e passou a designar a forma ou maneira própria de um escritor redigir as suas obras. Hoje apresenta algumas novas evoluções/extensões: forma de falar ou discursar, feição própria da expressão de um artista, costume, praxe, hábito, prática.
Vejam no que deu o ponteiro stilus: de instrumento de escrita chegou a feição própria ou particular de uma obra de arte.
A palavra Dembo derivou – mais correctamente, adaptou-se morfologicamente – do termo quimbundo ~Dembu (pl. ji–), “título que usavam os capitães subordinados do Rei do Congo e seus parentes e que, na organização fundada pelos portugueses, exerciam, nas capitanias, a autoridade militar e administrativa.” (Galvão).
Dembo não fugiu à evolução semântica. “O título passou depois para os chefes indígenas, como equivalente de Soba noutras regiões e, por fim, abrangeu todo o povo e toda a região.” (Galvão).
Outras acepções para Dembo (cf. Ribas) :
– s.cd. Natural da região dos Dembos, ao norte do rio Cuanza;
– s.m. Dialecto falado nessa região;
– s.m.pl. População dessa área, pertencente ao grupo étnico dos Quimbundos;
– adj. Relativo a essa população;
– s.m. Autoridade suprema tradicional, da região dos Dembos; Régulo; Soba que tem sob a sua jurisdição outros sobas.
Significados diversos do tema tratado: (cf. Ribas)
– s.m. Medicamento externo gorduroso para fricção;
– (kimb. ~Dembu) Espírito feminino que, sob a dependência de Lemba (entidade espiritual feminina que promove a procriação), a auxilia na sua missão.
Como vimos, “Dembos eram os chefes, dembos são os súbditos e Dembos é a região.” (Galvão).
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bibliografia:
CAMÕES, Luis Vaz de. Obras Completas, Edição Comemorativa do IV Centenário da Morte do Poeta, Lírica I, Editorial Verbo, Lisboa, 1980.
GALVÃO, Henrique. Outras Terras, Outras Gentes, Livraria Francisco Franco, Lisboa, 1942.
RIBAS, Óscar. Dicionário de Regionalismos Angolanos, Contemporânea Editora, Matosinhos, 1997.
abreviaturas:
adj. = Adjectivo.
cd = Comum de dois.
cf. = Conforme, de acordo com.
ji– = Prefixo.
Kimb. = Kimbundu.
m. = Masculino.
pl. = Plural.
s. = Substantivo.
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