Tenho bué de frio
É verdade que tenho, mesmo. Devo confessar que sou um friorento irrecuperável. Diz o meu irmão que faz as vezes de kabasa, [1] “nem parece que nasceste cá!” Quem nos acompanha de perto apercebe-se rapidamente que, efectivamente, nascemos com os azimutes trocados: eu, poveiro, deveria ter nascido em Angola e ele, angolano, é quem mais parece poveiro – nessas coisas do frio e assim! Por isso ando sempre, de inverno e mais, com bué de frio.
Alguns estudiosos referem a palavra francesa Beaucoup [2] como raiz do termo Bué.
A linguagem popular angolana é, reconhecidamente, pela lei do menor esforço empregada na eliminação simultânea de vários elementos de uma palavra ou expressão.
Analisando esta derivação teremos,
beaucoup > bôcu (forma fonética) > bô (apócope).
Uma norma popular, a que chamo a norma rítmica, é a que permite a duplicação da sílaba final de uma palavra, ou o acrescento (paragoge) de um e tónico, aberto (é) ou fechado (ê), por vezes prolongado, ou as duas formas em simultâneo, com o intuito de lhe dar uma expressão carinhosa ou rítmica, como em
Angola > Angolê
e no celebérrimo
Monangamba > Monangambééé, de António Jacinto e Ruy Mingas.
Desta norma podemos estabelecer a evolução completa:
beaucoup > bôcu > bô > boé > bué (metafonia).
A minha dúvida quanto a esta etimologia deve-se à ocorrência temporal. Diz-se que o termo teria surgido depois da chegada a Angola dos refugiados idos do Zaire, após a independência, em finais de 1975 ou princípios de 1976, portanto.
O meu primeiro contacto com a gíria luandense deu-se em 1972, quando abalei do sul para o norte de Angola, em situação laboral. Aquela linguagem atraiu-me de imediato e passei a estudá-la mas, infelizmente, todos os escritos que acumulei se perderam na voragem da guerra, devido ao deambular constante entre Uije, Porto Alexandre, Luanda e Portugal. Não tenho, portanto, documentos de análise para poder justificar que
escutei este termo bué de vezes, desde 1972.
É inquestionável que o termo Bué nasceu na gíria Calú (de Kaluanda, o natural de Luanda), uma linguagem popular, por vezes caracterizada como linguajar marginal. As palavras e expressões desta gíria nascem de corruptelas/derivações/evoluções do Português, a língua oficial e do Kimbundu, a língua étnica da região, mas a linguagem contém também termos intrínsecos e expressões idiomáticas (incluindo, actualmente, palavras/expressões de língua inglesa, maioritariamente norte-americanas) de grupos marginais com características de organização secreta ou similar. A existência do calú justifica-se, ou justificou-se, por duas ordens de razões:
1ª - resistência cultural ao colonialismo e
2ª – hermetismo de auto-protecção/identidade dos referidos grupos.
RuiRamos, que sabe disto como poucos, também considera que a palavra “nada tem a ver com o kimbundu”. [3] Tavez tenha razão,
mas vejamos, atendendo sempre a que a evolução fonética e a evolução semântica podem ocorrer simultaneamente:
1. mbuwe / mbwe, abundância ou fartura; confesso que desconhecia esta forma quimbunda – poderá ser um arcaísmo e os criadores do bué a tenham recolhido dos seus ancestrais; tal como
Rocha, [4] não consegui provas que possam confirmar ou desmentir a sua existência; a existir de facto, é a melhor candidata a mãe do bué;
2. existe em quimbundo o advérbio Buè, sinónimo de Bè, Bèbi e Búebi [5], aonde ou em que lugar ;
3. outro advérbio quimbundo, Bú [6] ou Buí, significa muito ou completamente escuro.
Luanda, pela sua condição de capital, sempre foi uma cidade grandemente cosmopolita. Então, por que não considerar que o termo Bué possa ter sido tomado de outra(s) língua(s), que não o quimbundo? Digo isto porque
4. existe em olunhaneka o radical mBwe [7], que significa cesta grande;
5. muito escuro diz-se mbu /uu/ em umbundo. [8]
Como já antes afirmei, sou de opinião que o significado original nem sempre é determinante. Mas, para isso, é necessário que tenhamos a certeza absoluta da etimologia. Ora, isso está longe de acontecer, no presente caso.
A palavra Bué ou, mais propriamente, a expressão Bué de, é entendida na gíria (hoje alargada, não só a Portugal mas também ao Brasil e a outros países de expressão portuguesa) como - abundante, em grande quantidade, muito, excessivamente, profundamente.
“Eu já nem liguei mais à gasosa, fiquei a olhar a estante com bué de fotos da família do Lima.” [9]
“ Zeca, viste mesmo a carne? Bocados pequenos sebo misturado, mas se cortar aproveita-se aí bué.“ [10]
Eventualmente nenhuma das palavras aqui sugeridas será a raiz de Bué. São, no entanto, pistas para uma tentativa de identificação. Ou nem isso: Bué pode, pura e simplesmente, ser apenas uma invenção do linguajar marginal que,
não obstante,
se internacionalizou.
Penso que a afirmação de J.M. Costa [2] (que pertence à coloquialidade de estratos alargados da população mais jovem portuguesa de zonas suburbanas) foi ultrapassada pela dinâmica da expressão; o próprio também o considerará, porventura. A utilização do termo nos Países de Expressão Portuguesa, com maior incidência em Angola e Portugal, na linguagem coloquial generalizada e na literatura, fez com que a sua primeva suburbanidade seja hoje um mero apontamento histórico.
É por essa razão que não vejo com bons olhos a afirmação de T.A. [11] - que o bué pode ser retirado dos dicionários.
Qu’é qu’é isso meu!? - banzar-se-ia o Jorge. Tás malaico?
O filho do bué
Como justificação de discordância, acrescento três à achega de Rui Ramos – “a língua portuguesa não se constrói só por via erudita desde os tempos dos lusitanos”: [3]
1ª- a condição de razoabilidade e de bom senso é discutível e, quiçá, imensurável por quem quer que seja;
2ª- dicionarizada ou não, eruditismo ou modismo, gíria ou calão, uma palavra pode viver eternamente, não obstante os eruditos, porque a Língua também evolui por via popular.
Um pequeno parêntese: o bué já tem um filho chamado buereré.
Esta derivação (extensão?) poderá estar relacionada com uma característica fonética do quimbundo que atribui ao D duas fonias, de acordo com a região ou o dialecto – tanto pode ser como o D do português digo, ou como o R de aro (razão pela qual o prefixo di também aparece como ri),
como em
Kombaditokua / Kombaritokua (varrição das cinzas, após óbito),
Kitadi / Kitari ou Ditadi / Ritari (dinheiro).
[ Existe uma característica similar, no Umbundo e nas línguas do SW de Angola, que atribui também dois valores, R e L, ao fonema R (ou ao L, como no ovo de Colombo). No final do texto surgirá uma palavra que é um exemplo: Otxiri / Otxili (verdade), como Otxindere / Otxindele (branco, indivíduo de raça branca) ]
Tudo visto, eis então a evolução para buereré:
bué de > bué re > bueré > buereré (norma rítmica).
3ª- Só quem não conhece a história do termo em causa pode partilhar essa afirmação obituária –
– o bué nasceu nos musseques, envergonhado, receoso como santo-e-senha, ganhou o asfalto, chegou à Mutamba, zarpou mar afora pela baía, vadiou na Metrulha, atravessou o Atlântico e ecoa já pelas amazónias da esperança. Ainda assim, da esperança!
Disse você que vai morrer!
Mas de morte morrida… ou de morte matada?
É que, caro senhor, o muadié está a raciocinar em função do português do Putu, e está esquecer o calú!
É uma doença infantil.
A Bíblia
Se bem repararam, tenho citado vários textos do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa.
A razão é simples: sou, desde sempre, um internauta assíduo daquela que é (não tenho dúvidas) a Bíblia Virtual da Linguística em Português. Esta Bíblia, contrariamente à outra, não justifica dogmas, apresenta formas várias de observar o mesmo e, por isso, temo-nos dado bem assim. Otxiri muene! [12]
Bem-haja João Carreira Bom, por onde quer que ande,
Bem-haja José Mário Costa.
notas e bibliografia:
[1] De acordo, desta vez abro uma excepção: Kabasa /ss/ designa, em quimbundo, o gémeo que nasce em segundo lugar, sendo o primeiro o kakulu. É bom de ver que não somos gémeos, embora possa parecer que sim.
[2] COSTA, José Mário. Bué de…, Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, 01.02.1997,
[url] http://www.ciberduvidas.com/pergunta.php?id=348:
“A origem é angolana e já pertence à coloquialidade de estratos alargados da população mais jovem portuguesa de zonas suburbanas. É nestas áreas que se cruzam as maiores influências étnico-culturais das comunidades africanas residentes na área de Lisboa, em particular. Bué é um calão luandense, que tem o significado do «beaucoup» francês, «muito de»: bué de charros, bué de confusão, bué de preconceitos.”
[3] RAMOS, Rui. Ainda a palavra “bué”, Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, 21.01.2003:
[url] http://www.ciberduvidas.com/pergunta.php?id=11100:
“parece que os dicionários portugueses agora incluem palavras do calão luandense. Óptimo, isto quer dizer que a língua portuguesa não se constrói só por via erudita desde os tempos dos lusitanos, «bárbaros», romanos, gregos, árabes..”
“quem introduziu esse calão de Luanda (que nada tem a ver com o kimbundu) em Lisboa foram os jovens luandenses”
“Parabéns aos jovens luandenses da diáspora que conseguiram o autêntico milagre de introduzir calão luandense no mais conceituado dicionário português.”
[4] ROCHA, Carlos. O uso de bué (= «muito»), novamente, Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, 10.11.2006:
[url] http://www.ciberduvidas.com/pergunta.php?id=18744:
“no Dicionário Etimológico Bundo-Português do P. Albino Alves (1947), encontro a forma mbuwe, que significa «abundância, fartura». Contudo, não consegui confirmar noutras obras se é esta a origem do bué português nem pude saber quais eram as propriedades sintá(c)ticas e semânticas da forma «mbwe».”
Nota: este é o texto (aliás, parte do) publicado no sítio, conforme acesso de 14.01.2009. Fiquei com dúvidas – a palavra é «mbuwe» ou «mbwe»?
[5] MATTA, J. D. Cordeiro da. Ensaio de Diccionario Kimbúndu-Portuguez, Casa Editora António Maria Pereira, Lisboa, 1893.
[6] NASCIMENTO, J. Pereira do. Diccionario Portuguez-Kimbundu, Typographia da Missão, Huilla, 1903.
[7] BONNEFOUX, Pde. Benedicto M. Dicionário Olunyaneka-Português, Missão da Huíla, Sá da Bandeira, 1940.
[8] DANIEL, Rev. Henrique Etaungo. Ondisionalu Yumbundu, Dicionário de Umbundo, Umbundo-Português, Edições Naho, Lisboa, 2002.
[9] ONDJAKI. Os da Minha Rua, Caminho, Lisboa, 2007, p. 20.
[10] MONTEIRO, Manuel Rui. Quem Me Dera Ser Onda, Edições Cotovia, 6ª edição, Lisboa, 1991, p. 49.
[11] T.A. Implementar/Bué, Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, 11.10.2001:
[url] http://www.ciberduvidas.com/pergunta.php?id=9390:
“«Bué» é um modismo juvenil, e é bem provável que em futuras edições venha a ser retirado, utilizando-se o único mecanismo de eliminação razoável: o bom senso”
[12] É como se diz em umbundo, nhaneca e outras línguas do SW- É mesmo verdade! ou (expressão genuinamente angolana) Juro com Deus!
admário costa lindo
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