2. O Paraíso
Quem olha para estas imagens descobre que o Paraíso existe. Fica em Luanda e serve, exclusivamente, para Reis, Príncipes, Viscondes, Condes, Marqueses, Duques, Valetes e Manilhas. E Jokers. Os tais de quem se sabe serem produtos do Vendedor de Passados.
Para estes pouco importa que o saneamento esteja podre – eles pouco tempo passam nas ruas, não sentem os cheiros.
Pouco importa que a distribuição eléctrica ande pelas ruas da amargura – eles compram geradores de corrente.
Pouco importa que falte a água canalizada – eles bebem água engarrafada, de marca, e lavam-se com perfumes, de marca.
Pouco importa que os musseques se tenham multiplicado na proporção de 1 para 20 – eles vivem em apartamentos de luxo e condomínios fechados, com áreas nunca inferiores a 150m2 por fracção.
O tempo do “Viva o Poder Popular” vai longe. O Povo já esqueceu o que isso queria dizer, se alguma vez pretendeu dizer alguma coisa. Muitos dos que berravam o slogan aos quarenta ventos hoje são Jokers, que podem assumir qualquer valor do baralho. Hoje quando alguém, por brincadeira, lhes sopra o velho slogan ao ouvido sentem asco e vomitam… uísque de malte e dom pérignon.
Quem olha para estas imagens descobre que o Paraíso existe. Fica em Luanda e dele se fixam fotos maravilhosas. Hoje, porém, o avanço da tecnologia permite-nos descobrir a fealdade que a beleza, por vezes, encerra.
Os Jokers pouco se importam com isso, apreciam mais o vistoso e o efémero. Manobram o passado com uma displicência arrogante.
“A agitação retrambolhava a placidez da ilha. Mais barcos cruzavam as águas descarregando objectos e pessoas. Os do bengalô matabichavam, a música suspendera-se e Noíto escutava as conversas.
«Fiat, já topaste que esses bailundos queimaram já as janelas? Puta que os pariu. Eu bem tentei um esquema para a casa ficar com o Silva mas o gajo é uma merda até decidir entrevistar-se com o funcionário da capitania. E agora calha-nos esta vizinhança. Traz aí o jindungo para remediar. Não é a mesma coisa. Devias ter temperado antes, Vera.»
«E os miúdos?»
«Eu na idade deles, pequeno almoço, pão e café com leite. E vivó-velho. Eles têm manteiga, doce, bolo, pá. Dá-me uma a estalar. Mando cá um sarro. Carreguei demais no uísque, ontem. Hoje não saio da cerveja. Fiat, amanhã, vais-me enterrar essas latas todas, pá. Isto é uma vergonha. Porra, és pior que o Comissariado ou estás a precisar de Filipinos?»
«Começas logo de manhã a dar pra trás!»
«O Jaime não aguenta! Henda, tu ou o Mandela, liguem a música, estamos a desperdiçar a energia.» [3]
“Andava a manhã a tilintar-se de latas e garrafas, patadas e dentadas dos cães sobre os despojos sobressaídos na areia. Ossos. Demasias de condutos, carne. Sobejos de peixe. Pedaços de ananás, mamão e abacate. Acompanhamentos, funji, arroz, batata e macarrão. Tudo salgalhado na areia. Papéis e pensos higiénicos. E o farejar dos cães, rabo de antena, latindo em despique pelos mais do espólio.” [4]
Ali fica o Paraíso, paredes-meias com o Inferno. Dantesco.
admário costa lindo
[3] Monteiro, Manuel Rui. Rioseco, Edições Cotovia, Lisboa, 1997, p. 111.
[4] Monteiro, ob.cit. p. 115.
crédito das imagens:
1. Mário Leong Antunes
2,3,4. Fernando Manuel Antunes
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