SEGUIDORES

23 de novembro de 2009

D. Birmingham e o Maio de 77

Hukalilile

A análise história tanto pode constituir uma teoria isenta como um enorme embuste.

Quanto ao que a África em geral e a Angola em particular diz respeito, é politicamente correcto afirmar-se que o acervo histórico produzido no período Colonial “foi pegado por um tropel de marinheiros, soldados, comerciantes, missionários, cartógrafos, publicistas, membros de Sociedades de Geografia, cientistas e políticos europeus que foram cozinhando, para o seu interesse teórico e prático, representações sobre o continente e seus habitantes que eles procuraram impingir aos africanos.” (1)

Barbeitos generaliza e mete tudo dentro do mesmo saco, mas não quer isto dizer que não tenha razão, genericamente falando. E esta verdade não invalida uma outra: que o que se seguiu não foi melhor e que os novos marinheiros, soldados, comerciantes, missionários, cartógrafos, publicistas, membros de Sociedades de Geografia, generalizando também, actuaram da mesmíssima forma.

A nova “visão do homem africano e angolano finalmente ajustada aos seus próprios interesses e idiossincrasias” (2) pode não ser uma visão tão isenta como seria desejável e resultar na transposição da posição oficial do sistema político, como o foi no antigamente.

Vem isto a respeito do relato de David Birmingham sobre a “tentativa de golpe de Estado em Luanda a 27 de Maio de 1977.” (3) Sobre os factos, grosso modo, o que diz Birmingham é o mesmo que diz o Governo e o MPLA, ainda que o autor introduza afirmações como “a história oficial da tentativa de golpe de Maio … cobre a maior parte dos problemas…”, tentando assim afirmar uma pretensa isenção de análise.

Esta posição sobre factos históricos não é estranha. A História de Angola, a partir de 1961, confunde-se com a(s) História(s) do MPLA, porque assim se pretende que seja.

O MPLA nunca foi, ou apenas o foi durante um período muito curto, um movimento democrático, mormente após a chegada ao poder (a direcção do Movimento) de Agostinho Neto. Não existe, na História oficial, referência ao método utilizado por Neto para atingir a Direcção que, é sabido, foi tudo menos democrático. O mujimbo (4) fala em usurpação.

Oficialmente Mário Pinto de Andrade, Gentil Viana e outros dirigentes da primeira hora são vistos como nada tendo a acrescentar à História do Movimento. Viriato da Cruz foi sumariamente riscado dessa História. E convém lembrar que Viriato da Cruz foi um dos primeiros e destacado dirigente do Movimento, por todos reconhecido como uma mente brilhante e de extrema dedicação à causa da libertação. Foi feito prisioneiro na China, pelos mentores da Revolução Cultural, pelo facto de se ter recusado a alterar um seu relatório sobre a contribuição da China para a Revolução em África, nada abonatório para os chineses. O MPLA abandonou-o cobardemente, deixou que passasse os últimos tempos de vida na mais cruel indigência, deixou-o apodrecer nas masmorras onde acabou por morrer, tendo sido sepultado sem a mínima dignidade.

O MPLA tem, a respeito da lavagem histórica e outros itens da castração mental copiados do Big Brother, defensores horripilantes. Veja-se o que se passou com José Eduardo Agualusa, quando afirmou que "Uma pessoa que ache que o Agostinho Neto, por exemplo, foi um extraordinário poeta é porque não conhece rigorosamente nada de poesia. Agostinho Neto foi um poeta medíocre." (5)

Saiu em defesa da causa mitológica um tal João Pinto, pelos vistos jurista e, pelos vistos também, professor de Ciência Política e Direito Público: “Acho mesmo que, deve haver responsabilidade criminal e civil por estarem reunidos todos requisitos do ultraje à moral pública (ofendeu a moral cultural ou intelectual dos angolanos), previsto e punido no Artigo 420º do Código Penal.”

O MPLA de Agostinho Neto sempre lidou muito mal com as opiniões contrárias. Foi assim com a Revolta Activa, com a Revolta do Leste e, por fim, com o Fraccionismo. Foi este último o que ele mais temeu porque, para além do mais, era ideologicamente o mais incómodo.

“Inicialmente os seus textos eram alegadamente baseados em Enver Hoxa da Albânia, mas em 1975 mudaram para os escritos de Mao e Nito Alves perorou largamente sobre a análise de classes ao estilo chinês em Angola. Cita Alves (6) voltou estes grupos para Lenine. Dentro do MPLA, estava agora aberto o debate acerca das interpretações verdadeiras e falsas de ideias políticas comuns.” (7) E o MPLA, por escolha – ou imposição - de Agostinho Neto, transformou-se em partido marxista-leninista.

Mas, antes disso, “Agostinho Neto e os seus estavam preocupados com o debate interno, pois as Comissões Populares de Bairro eram grandes centros de debate com a população. E, como seria natural, também estavam preocupados com o problema dos delegados ao Congresso. Havia que evitar que os nitistas chegassem ao Congresso, anunciado para finais de 1977. Com efeito, existia o sério risco de conquistarem os principais lugares de direcção.” (8)

No período pós-independência o MPLA e Neto impuseram ao país, mais do que o partido único, o pensamento orwelliano único, de resto à semelhança do que sempre se passara dentro do Movimento. O próprio Barbeitos afirma que “circunstâncias locais e internacionais fizeram com que, após a independência, a política de informação angolana não divergisse o necessário da prevalecente na ditadura colonial, para que a população adquirisse a capacidade de acesso e de expressão abertos acerca de certo número de coisas que se passavam no país e fora dele,” não se inibindo em referir “a clausura imposta à formação de uma opinião pública livre.” (9)

É assim que, relatando os factos, Birmingham afirma que “o quadro estava montado para um golpe de Estado que se desenrolou com lentidão incrível, brutalidade inexorável e incompetência ridícula durante os seis dias seguintes”: (10)

1. “O quadro estava montado” realmente, mas por alguém que não os supostos conspiradores,

2. pelo que “se desenvolveu com lentidão incrível”, confirmação da inexistência de golpe; que a teoria da conspiração foi montada para legitimar a actuação subsequente das forças da repressão: “O que se passou em Angola terá sido uma provocação, longa e pacientemente planeada, de modo a levar os nitistas a perderem a cabeça e a saírem à rua, justificando assim um contra-golpe, também minuciosamente preparado.” (11)

3. A “brutalidade inexorável” veio da parte das forças repressivas do sistema e não se prolongou pelos “seis dias seguintes” mas por muitos e longos meses. Não se confinou aos nitistas, alargou-se aos seus amigos, familiares, companheiros ideológicos e deu azo a oportunos assassinatos purificadores indiscriminados e em massa.

“David Birmingham é sem dúvida um dos pioneiros da moderna historiografia angolana”, (12) diz Barbeitos mas se, por mero acaso, o seu texto sobre o 27 de Maio chegar a ser tido como Fonte Histórica, bem mais para diante, quando os nossos filhos o lerem terão uma visão totalmente errada desse período da História de Angola:

“Num aspecto, contudo, os conspiradores angolanos adoptaram uma característica perturbadora da revolução etíope, nomeadamente, o assassinato pessoal e a sangue-frio de líderes antagonistas.” (13)

Ficarão com a noção de que os 20 ou 30 mil mortos (14) resultaram da acção dos nitistas e que eles próprios, Nito Alves, Zé Van Dunem e outros, se assassinaram a si próprios.


admário costa lindo




(1) BARBEITOS, Arlindo. Considerações Preliminares, in BIRMINGHAM, David. Portugal e África, Vega Editora, Lisboa, 2003, pg. 14.
(2) Barbeitos, ob. cit., pg.9.
(3) Birmingham, ob. cit., pg. 183.
(4) Notícia; boato.
(5) A este respeito ler o artigo
Mitologias.
(6) aliás Sita Valles.
(7) Birmingham, ob. cit., pg.190.
(8) MATEUS, Dalila Cabrita e Álvaro. Purga em Angola, Nito Alves/Sita Valles/Zé Van Dunem, o 27 de Maio de 1977, 3ª edição revista e actualizada, Texto Editores, Lisboa, 2009, pg. 176.
(9) Barbeitos, ob. cit., pgs. 19-20.
(10) Birmingham, ob. cit., pg. 185.
(11) Mateus, ob. cit., pg. 176.
(12) Barbeitos, ob. Cit., pg. 9.
(13) Birmingham, ob. cit., pg. 196.
(14) “Os cálculos sobre o número de mortos variam. Um responsável da DISA ouvido por nós fala em 15.000. A Amnistia Internacional fez um levantamento e avançou com 20.000 a 40.000 mortos. Adolfo Maria, militante da chamada Revolta Activa, e José Neves, um juiz militar, falam de 30.000 mortos. O jornal Folha 8 refere 60.000. E a chamada Fundação 27 de Maio foi até 80.000. No meio termo estará a virtude. Quedemo-nos, então, pelos 30.000 mortos, o número mais referido.” Mateus, ob. cit., pgs. 151-152.

1 comentário:

Anónimo disse...

Voltarei - para ler mais devagar e com mais cuidado, quando estiver menos cansada...
Um abraço
Ju