“é evidente que é preciso ter em conta a mediocridade…” (1)
Há muito quem aspire ao estatuto de mito, neste mundo e em outros. Os mitos, como os deuses, constroem-se para serem idolatrados, alguns para lá de várias eternidades. Isto porque, é bom de ver, a cada um a sua eternidade. Mas os mitos, como os deuses, também se desmoronam dado que têm, todos eles, pés de barro.
Mais do que de qualquer outro aspecto, como o respeito pelas pessoas visadas e pela sua acção cívica que Agualusa expressamente ressalvou, tendo em atenção o rumo que as coisas tomaram aqui se falará de Mitos, de Liberdade e de Sipaios.
José Eduardo Agualusa, autor de “O Vendedor de Passados”, afirmou ao Angolense sobre o autor de “Sagrada Esperança”:
"Uma pessoa que ache que o Agostinho Neto, por exemplo, foi um extraordinário poeta é porque não conhece rigorosamente nada de poesia. Agostinho Neto foi um poeta medíocre", adiantando ainda que António Cardoso ou António Jacinto “a quem reconhece destaque na luta nacionalista angolana, são igualmente fracos poetas". (2)
Até aqui nada se nos afigura como anormal - nem o conceito legítimo, tampouco a adjectivação, uma vez que medíocre é melhor que mau que, por sua vez, vale mais que péssimo.
A opinião de Agualusa é partilhada, em Portugal e para já, por Vasco Graça Moura : "Conheço relativamente mal a poesia angolana. Mas daquilo que conheço, estou inteiramente de acordo com aquilo que diz o José Eduardo Agualusa. Penso que ele faz uma apreciação do ponto de vista literário e isso está no exercício pleno da sua liberdade de expressão e do seu direito à crítica." (2)
Da polémica em Angola, Artur Queiroz acha que “a grandeza da obra literária de Agostinho Neto foi reconhecida em todo o mundo por académicos, professores, críticos literários e confrades.” (3)
Sousa Jamba contraria-o ao afirmar: “Tenho dado aulas e feito conferências de e sobre Literatura Africana em várias partes do mundo. Muitos dos meus alunos e participantes dessas conferências nunca ouviram falar de Agostinho Neto.” (4)
Laurindo Vieira afirma que não é “crítico literário, nunca fui e acredito que não o serei por não dispor de formação nesta área”, mas lá vai dizendo que “a poesia de Agostinho Neto apresenta uma dimensão estética em que predomina o belo e o seu efeito sobre os sentidos é avassalador” e “retrata um tempo de sonhos desfeitos, de hetero-utopias constantes em que o sonho e a realidade do sujeito retratado se manifestavam no desejo da Liberdade.” (5)
Não é por essas mas por outras que Barthes considera que “é a escrita do recitativo, e não o seu conteúdo, que reintegra o romance sartriano na categoria das Belas-Letras.” (1)
“Agostinho Neto guiou o seu povo pelo caminho das estrelas. Que outro poeta na História Universal libertou a sua pátria com poemas e fuzis?”, questiona(-se) Queiroz. (3)
Abomino o mito. Essa dos fuzis é um tanto forçada, embora faça parte da argamassa utilizada para a construção do dito. Seja como for, com as duas coisas em simultâneo - poemas e fuzis - confesso que não me recordo, de momento. Mas lembram-se que há não muito tempo atrás se exaltava o conceito e a prática da Negritude, como arma libertadora? Pois então, nesse contexto, que tal lembrar Léopold Sédar Senghor ? E, já agora, o que tem isso a ver com a qualidade literária?
“... o presumível escritor voltou a atacar, desta vez três poetas que estão mortos e por isso nem sequer podem fazer a sua defesa.” (3)
Xé! Calma aí, para ver se entendi: por terem morrido, já não se pode falar deles? Fala-se, sim ... mas só se for em tom elogioso! É isso?
Bem vistas as coisas, nada de verdadeiramente dramático se passou, até esta fase da maka. Argumentar desta forma é tão normal, em sociedade, como tomar uma aspirina para a enxaqueca.
Em sociedade, ou em democracia como é mais correcto discorrer. Há, porém, quem oiça falar em democracia e trate imediatamente de sacar a pistola.
“Vem agora uma flatulência retardada do colonial fascismo sujar a sua memória com uma tentativa de assassinato de carácter.” (3)
Grande pensamento, camarada! Antológico! Estamos a tratar de qualidades de carácter ou de qualidades literárias? Então que tal falarmos do nacional-fascismo ou fascismo-nacionalista?
“A cobardia aqui assume a dimensão de um assassinato de carácter o que faz de Agualusa uma figura com todos os predicados para entrar na minha lista pessoal dos leprosos morais.” (3)
Arrepio-me quando alguém que está no poder, ou encostado a ele como é o caso, fala em listas pessoais. Nem todos têm a memória curta e é preciso ter cuidado porque não se trata, aqui, da lista de Schindler.
Grosso modo estas opiniões, por serem salutares, não obstam a que estejamos de sobreaviso em relação a quem argumenta com um porrinho na mão. Porém, chegados à argumentação de João Pinto é inevitável que sintamos calafrios. As afirmações que este senhor faz - e só as faz porque tem as costas quentes - são aterradoras. Pelo exacerbado mitismo que encerram e pela evidente intenção de repressão que exaltam. Tanto mais que surgem de uma área que deveria ser um garante fundamental da liberdade - o Direito e a Justiça.
João Pinto (6) disse de sua justiça: (7)
“Ao escritor importa narrar, verdades ou inverdades, mas cabe aos professores, intelectuais ou sábios ensinarem o que é verdadeiro, científico, afastando os embustes, malabarismos; e aos políticos servirem em nome do bem comum.”
Esta tirada, no que se refere à ficção, e à poesia em particular, são palavras ocas. Depois há a velha questão de saber o que é a Verdade, ou as verdades. Quanto ao “servirem em nome do bem comum” caiu-lhe a boca para a verdade: servirem em nome de e não servirem O bem comum.
“Mas, ao sê-lo, não pode mentir, [o escritor] ofender a honra dos outros, muito menos impor seus gostos pessoais ou estéticos, mesmo que apresentados; por serem susceptíveis de discussões, … é uma questão de interesses da comunidade, é gestão de interesses, ou seja, é política, cidade, tem haver com lideranças dos sujeitos, elites naquilo que é a expressão máxima na estética literária, política, económica ou social.”
O que aí vai de estapafúrdio. A literatura tem uma estética própria, melhor, estéticas concretas que não se devem confundir nem misturar com a politiquice de que V.Exª trata.
“Neto é Kilamba, kituta, kiximbi sendo-o é intérprete das divindades aquáticas do Kwanza, é o antropónino de crianças que nascem com poderes especiais, segundo o antropólogo Virgílio Coelho (1989). Quando o fazem rompem, revolucionam, atacam dando origem aos conflitos ou xinguilamentos, atendendo os interesses espirituais, por razões inerentes à religiosidade, nzumbi, kalunga, malunga, ituta, segundo Heli Chatelain.”
O Mito em avançado estadio de construção, mais concretamente.
“… o texto da entrevista de Agualusa, no Jornal Angolense de 15 a 22 de Março de 2008, e no seu Artigo de defesa no Semanário a “Capital”, de 29 de Março a 5 de Abril de 2008, mostra um arrazoado intelectual de uma elite que a todo custo quer ser livre e fazer o que lhe apetece sem ser respondido! São democratas quando xingam os outros, quando dizem qualquer baboseira e ainda por cima se agradece! Que tamanha liberdade, que ética defendemos, que humanismo! Que educação, que conhecimento manifestamos, onde está afinal a cultura...
De humanismo falarei num próximo artigo sobre o encerramento do Escritório das Nações Unidas para os Direitos Humanos em Angola.
Por outro lado, quem lê o seu artigo na íntegra fica com a clara sensação que este pedaço de prosa se vira contra si, como a pescadinha-de-rabo-na-boca. E, ademais, ao “fazer o que lhe apetece sem ser respondido” V.Exª vai já esclarecer:
“Acho mesmo que, deve haver responsabilidade criminal e civil por estarem reunidos todos requisitos do ultraje à moral pública (ofendeu a moral cultural ou intelectual dos angolanos), previsto e punido no Artigo 420º do Código Penal. É preciso moralizar, sob pena de banalizar a figura mais importância da nossa memória colectiva contemporânea.”
V.Exª enganou-se, não tem estofo de jurista, nem de homem de Direito. Talvez de sipaio ou capataz de roça. Que me diz?
De todos aqueles que correram atrás das declarações de Agualusa, Sousa Jamba surge como o mais equilibrado e sensato:
“Temos de agradecer a Agualusa por ter levantado a questão. Agora cabe-nos ler ou reler as obras dos autores que ele menciona para tirarmos as nossas conclusões.” (4)
E assim sendo, sejam quais forem as conclusões, urge que os sipaios de Angola interiorizem de uma vez por todas que Opinião não é um Crime.
admário costa lindo
notas e fontes:
(1) Roland Barthes. O Grau Zero da Escrita, Edições 70, Lisboa, 1997.
(2) José Eduardo Agualusa considera Agostinho Neto ”poeta medíocre" e é ameaçado com processo judicial, Lusa, 8.04.2008.
(3) Artur Queiroz. O comerciante desalmado, Jornal de Angola, 18.03.2008
(4) Sousa Jamba, Em defesa de José Eduardo Agualusa, Angolense cit. AngoNotícias, 22.03.2008.
(5) Laurindo Vieira. Sobre a poesia de Agostinho Neto, Jornal de Angola, 30.03.2008.
(6) João Pinto é Jurista e Ensina Ciência Política e Direito Público na UnIA e Faculdade de Letras e Ciências Sociais da UAN (Universidade Agostinho Neto).
(7) João Pinto, Literatura identidade e política, Jornal de Angola, 6.04.2008.