Acordo
ortográfico: acabar já com este erro antes que fique muito caro
Passado um período de transição, pode voltar-se rapidamente
à norma ortográfica vigente e colocar o acordo na gaveta das asneiras de
Estado, junto com as PPP e os contratos swaps e muita da “má despesa”.
O acordo ortográfico é uma decisão política e como tal deve
ser tratado. Não é uma decisão técnica sobre a melhor forma de escrever
português, não é uma adaptação da língua escrita à língua falada, não é uma
melhoria que alguém exigisse do português escrito, não é um instrumento de
cultura e criação.
É um acto político falhado na área da política externa,
cujas consequências serão gravosas principalmente para Portugal e para a sua
identidade como casa-mãe da língua portuguesa. Porque, o que mostra a história
das vicissitudes de um acordo que ninguém deseja, fora os governantes
portugueses, é que vamos ficar sozinhos a arcar com as consequências dele.
O acordo vai a par do crescimento facilitista da ignorância,
da destruição da memória e da história, de que a ortografia é um elemento
fundamental, a que assistimos todos os dias. E como os nossos governantes,
salvo raras excepções, pensam em inglês “economês”, detestam as humanidades, e
gostam de modas simples e modernices, estão bem como estão e deixam as coisas
andar, sem saber nem convicção.
O mais espantoso é que muitos do que atacaram o “eduquês”
imponham este português pidgin, infantil e rudimentar, mais próximo da
linguagem dos sms, e que nem sequer serve para aquilo que as línguas de
contacto servem, comunicar. Ninguém que saiba escrever em português o quer
usar, e é por isso que quase todos os escritores de relevo da língua
portuguesa, sejam nacionais, brasileiros, angolanos ou moçambicanos, e muitas
das principais personalidades que têm intervenção pública por via da escrita,
se recusam a usá-lo. As notas de pé de página de jornais explicando que, “por
vontade do autor”, não se aplicam ao seu texto as regras da nova ortografia são
um bom atestado de como a escrita “viva” se recusa a usar o acordo. E
escritores, pensadores, cronistas, jornalistas e outros recusam-no com uma
veemência na negação que devia obrigar a pensar e reconsiderar.
Se voltarmos ao lugar-comum em que se transformou a frase
pessoana de que a “minha pátria é a língua portuguesa”, o acordo é um acto antipatriótico,
de consequências nulas no melhor dos casos para as boas intenções dos seus
proponentes, e de consequências negativas para a nossa cultura antiga, um dos
poucos esteios a que nos podemos agarrar no meio desta rasoira do saber, do
pensar, do falar e do escrever, que é o nosso quotidiano.
Aos políticos que decidiram implementá-lo à força e
“obrigar” tudo e todos ao acordo, de Santana Lopes a Cavaco Silva, de Sócrates
a Passos Coelho, e aos linguistas e professores que os assessoraram,
comportando-se como tecnocratas – algo que também se pode ter do lado das
humanidades, normalmente com uma militância mais agressiva até porque menos
"técnicas" são as decisões –, há que lembrar a frase de Weber que
sempre defendi como devendo ser inscrita a fogo nas cabeças de todos os
políticos: a maioria das suas acções tem o resultado exactamente oposto às
intenções. O acordo ortográfico é um excelente exemplo, morto pelo “ruído” do mundo. O acordo ortográfico nas
suas intenções proclamadas de servir para criar uma norma do português escrito,
de Brasília a Díli, passando por Lisboa pelo caminho, acabou por se tornar
irritante nas relações com a lusofonia, suscitando uma reacção ao paternalismo
de querer obrigar a escrita desses países a uma norma definida por alguns
linguistas e professores de Lisboa e Coimbra.
O problema é que sobra para nós, os aplicantes solitários da
ortografia do acordo. O acordo, cuja validade na ordem jurídica nacional é
contestável, que nenhum outro país aprovou e vários explicitamente rejeitaram,
só à força vai poder ser aplicado. A notícia recente de que, nas provas – que
acabaram por não se realizar – para os professores contratados, um dos
elementos de avaliação era não cometerem erros de ortografia segundo a norma do
acordo mostra como ele só pode ser imposto por Diktat, como suprema forma de
uma engenharia política que só o facto de não se querer dar o braço a torcer
explica não ser mudado.
Porém, começa a haver um outro problema: os custos de
insistirem no acordo. A inércia é cara e no caso do acordo todos os dias fica
mais cara. A ideia dos seus defensores é criar um facto consumado o mais
depressa possível. É esta a única força que joga a favor do acordo, a inércia
que mantém as coisas como estão e que implica custos para o nosso défice
educativo e cultural.
É o caso dos nossos editores de livros escolares que
começaram a produzir manuais conforme o acordo e que naturalmente querem ser
ressarcidos dos seus gastos. Mas ainda não é um problema insuperável e, acima
de tudo, não é um argumento. Passado um período de transição, pode voltar-se
rapidamente à norma ortográfica vigente e colocar o acordo na gaveta das
asneiras de Estado, junto com as PPP e os contratos swaps, e muita da “má
despesa”. Porque será isso que o acordo será, se não se atalhar de imediato os
seus estragos no domínio cultural.
O erro, insisto, foi no domínio da nossa política externa
com os países de língua portuguesa, e esse erro é hoje mais do que evidente: os
brasileiros, em nome de cuja norma ortográfica foram introduzidas muitas das
alterações no português escrito em Portugal, nunca mostraram qualquer
entusiasmo com o acordo e hoje encontram todos os pretextos para adiar a sua
aplicação. No Brasil já houve vozes suficientes e autorizadas para negar
qualquer validade a tal acordo e qualquer utilidade na sua aplicação. Os
brasileiros que têm um português dinâmico, capaz de absorver estrangeirismos e
gerar neologismos com pernas para andar muito depressa, sabem que o seu
“português” será o mais falado, mas têm a sensatez de não o considerar a norma.
Nós aqui seguimos a luta perdida dos franceses para a sua
língua falada e escrita, também uma antiga língua imperial hoje em decadência.
Querem, usando o poder político e o Estado, manter uma norma rígida para a sua
língua para lhe dar uma dimensão mundial que já teve e hoje não tem. Num
combate insensato contra o facto de o inglês se ter tornado a língua franca
universal, legislam tudo e mais alguma coisa, no limite do autoritarismo
cultural, não só para protegerem as suas “indústrias” culturais, como para
“defender” o francês do Canadá ao Taiti. Mas como duvido que alguém que queira
obter resultados procure no Google por “logiciel”, em vez de “software”, ou
“ordinateur”, em vez de “computer”, este é um combate perdido.
Está na hora de acabar com o acordo ortográfico de vez e
voltarmos a nossa atenção e escassos recursos para outros lados onde melhor se
defende o português, como por exemplo não deixar fechar cursos sobre cursos de
Português nalgumas das mais prestigiadas universidades do mundo, ter disponível
um corpo da literatura portuguesa em livro, incentivar a criatividade em
português ou de portugueses e promover a língua pela qualidade dos seus
falantes e das suas obras. Tenho dificuldade em conceber que quem escreve
aspeto – o quê? – em vez de aspecto, em português de Portugal, o possa fazer.