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24 de janeiro de 2008

Não se pode viver com o rio...


Quando as grandes catástrofes naturais sucedem são os mais pobres, aqueles que vivem do dia-a-dia, da sua força de trabalho que lhes fornece condições de mera subsistência, quem mais sofre.

Nessas alturas salva-os apenas a solidariedade, as acções de organizações não governamentais que, a esmagadora maioria das vezes, fazem muito mais do que os governos e que, para além disso, dão aos governantes as alternativas certas para as situações concretas, conhecimentos que só pode adquirir quem anda no terreno com as vítimas.

As cheias do Zambeze já se tornaram ciclicamente regulares. A tradição tem uma grande força naquela região, como noutras, mas já muita coisa se poderia ter feito para controlar e prevenir as cheias e evitar tanta desgraça. Infelizmente os governos têm a memória curta e mesquinha.

admário costa lindo










Não se pode viver com o rio, nem se pode viver sem ele






Os povos que vivem ao longo do rio Zambeze, na região central de Moçambique, sabem que, com pequenos intervalos anuais, uma inundação é inevitável. Podem perder tudo mas o solo fértil da planície inundada, o peixe a adicionar ao seu cabaz alimentar e a tradição levam-nos a regressar às planícies, a cada primavera, para plantação das novas colheitas.

Este ano, conforme o governo de Moçambique ia resgatando por barco os fazendeiros, muitos das mesmas comunidades vitimadas pelas inundações do ano passado e alguns residentes na bacia do rio, começaram a questionar-se sobre a possibilidade de se manter essa tradição. O Zambeze transbordou por três vezes em sete anos, provocando devastação e roubando vidas.

"Este ano foi demais," disse Félix Bernardo, um fazendeiro da vila inundada de Muriwa, descansando à sombra de uma árvore na cidade de Mopeia, província do Zambeze, depois de ter desembarcado de um barco de salvamento. "Não restou nenhum alimento. O povo está farto desta situação”.

Bernardo e cerca de vinte vizinhos esperavam, ao calor opressivo da meia-tarde, a partida para o centro de realojamento de Zona Verde, ali próximo. Carregavam todas as suas imbambas: panelas e cabaças, uma enfiada de peixe seco, algumas mangas, e rolos de luandos. Disseram que as reservas de alimentos se tinham perdido.

Quando um trabalhador desalojado sugeriu que passariam agora a viver do dia-a-dia, o grupo agitou-se. "Viver do dia-a-dia era o que já fazíamos!" disse Adélia Ernesto, também de Muriwa, que chegou no mesmo barco com um bebé às costas. "Aqui, mesmo que cultivemos, não haverá nenhum alimento."

Em Mopeia muitas pessoas dos centros de realojamento partilham a opinião de Ernesto e acreditam que a terra acima da área de inundação não é suficientemente fértil para alimentar grandes famílias. "Aqui há um lugar para nós permanecermos, mas a terra não dá grande coisa," disse Inês de Luís, deslocada há uma semana da sua cidade para o Centro de Realojamento 24 de Julho. "Nós poderíamos permanecer aqui mas o alimento não crescerá, assim teremos que voltar para as zonas baixas."


Não voltem para casa

Os 2.574 km de comprimento do rio Zambeze, o quarto mais extenso de África, correm desde a Zâmbia, de Angola, ao longo das fronteiras da Namíbia, do Botswana e do Zimbabwe até Moçambique, onde desagua no Oceano Índico.

Depois das inundações de 2007, que ceifaram dezenas de vidas, o governo de Moçambique incentivou fortemente os fazendeiros a reconstruir as suas casas em terrenos mais elevados e a fazer sementeiras alternativas caso estivessem na disposição de continuar a plantar nos terrenos de aluvião. "No ano passado nós aconselhámos a população a cultivar dois lotes de terra," disse Abrista Mujuarte, administrador distrital de Mopeia. "Há algumas comunidades onde cada família fez duas quintas."

Mas as pessoas do acampamento de Zona Verde dizem que lá não há força de trabalho suficiente para cultivar dois lotes de terra, mesmo nas comunidades não afectadas pela recente inundação. No acampamento os membros masculinos da família fazem tijolos durante o dia em troca de ajuda alimentar, enquanto as mulheres cultivam as terras junto ao rio na esperança de uma colheita melhor.

Apesar da actividade de fabrico de tijolos, as pessoas do centro de Zona Verde vivem em qualquer lugar, desde casas com cobertura de capim a tendas esfarrapadas do ano passado. Dúzias de jovens voluntários vindos da capital, Maputo, disseram que não havia cimento suficiente para as prometidas casas que se disponibilizaram vir construir para os desalojados.

A inundação deste ano, que desalojou mais de 57.000 pessoas, veio cedo demais e apanhou de surpresa os organismos não-governamentais mais relevantes. Como parte de um plano de recuperação das vítimas da inundação do ano passado, a Save the Children do Reino Unido organizou duas feiras agrícolas em Mopeia, em Novembro 2007.

Este organismo ofereceu às famílias certificados no valor aproximado de 16,00 US dólares e convenceu os comerciantes locais de sementes e ferramentas a vender-lhes os seus produtos. O governo de Moçambique organizou feiras semelhantes em outras partes do distrito. Infelizmente, as sementeiras feitas com aquelas sementes perderam-se uma vez mais. "Tudo que nós recebemos na feira de Muriwa, todas aquelas coisas se perderam na enxurrada," disse Inês de Luis.


"Diz-se," repete Judite Waera, responsável do Save the Children em Mopeia, "que é um fenómeno natural mas foi uma despesa que desperdiçámos. A partir de agora será necessário prever isto; agora aprendemos a lição."

Repensar estratégias

Os trabalhadores desalojados, o governo e os residentes perguntam-se como prevenir a perda das colheitas e as evacuações em massa quando o rio Zambeze voltar a transbordar. A distribuição de terras, a ajuda agrícola e as medidas de controlo das inundações, como diques, foram possibilidades equacionadas. "Não podemos incentivar as populações a mudarem-se para terrenos mais elevados se não lhes for oferecida uma alternativa económica," disse Chris McIvor, director nacional do Save the Children do Reino Unido.

Disse ainda que a sua organização irá implementar um programa que beneficiará as crianças órfãs e vulneráveis, incluindo as vítimas das inundações. O programa incentiva os membros da comunidade a fazer propostas de negócios em actividades como a pesca, a carpintaria ou o artesanato; aos projectos seleccionados serão concedidos subsídios até ao montante de 1.200 US dólares.

Estimulando meios de subsistência para além do produto das colheitas, McIvor tem esperança que as vítimas do rio não voltarão a viver sem nenhuma fonte de rendimento. "É um modelo que deveria ser seguido pelo governo e por outras organizações”, disse aquele responsável. “Para as populações continuarem em zonas seguras, necessitam destes incentivos económicos.”


IRIN


online, 22.01.2008